Democracia, alternância de poder e pluralismo político.

Jacobinistas
7 min readNov 8, 2020

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Ao se analisar a realidade política das experiências do assim chamado “socialismo real”, um dado relevante sobressai: um pluralismo partidário irrestrito, nos moldes propugnados pelos “socialistas democráticos”, inexistiu. Seria isso um sinal do autoritarismo inerente ao comunismo, como defendem os liberais? Ou seria uma resultante acidental de frequentes, porém, inevitáveis, revoluções traídas, como sustentam muitos socialistas democráticos e trostskystas? Creio que a resposta não está em nenhuma das duas hipóteses.

Todas as revoluções proletárias somente foram possíveis graças um elevado grau de consciência e mobilização da classe trabalhadora que a levou a uma unidade política. Essa unidade política esteve invariavelmente caracterizada pelo protagonismo de um partido hegemônico, o qual dirigiu uma série de outras organizações políticas e massas de trabalhadores a eles simpáticos.

No entanto, essa unidade, necessária, para se levar à cabo a destruição de uma ordem antiga, tende, normalmente, a se desagregar quando da construção da nova ordem política. Então, da unidade, passa-se à disputa política acerca dos rumos a serem a partir de então tomados, processo que Domenico Losurdo chama de “Dialética de Saturno”, ao analisar as experiências da Revolução Francesa e Russa.

Essa disputa política poderá se dar de diversas maneiras, algumas delas pacíficas, dentro dos ditames éticos e morais, outras, de forma violenta e sem escrúpulos. Fato é que um processo revolucionário se dá, necessariamente, em um contexto de violência, tanto defensiva, por parte dos revolucionários, quanto agressiva, por parte da contrarrevolução.

Portanto, é compreensível, do ponto de vista do materialismo histórico, que as disputas políticas posteriores à revolução também tenha se dado de forma violenta. Isso não exime, no entanto, todos os comunistas realmente comprometidos com a emancipação da classe trabalhadora das suas responsabilidades morais e éticas, as quais devem pautar inclusive a violência revolucionária.

Nesse sentido, com base nos exemplos históricos, entendo que o grau de violência e ausência de ética nessas disputas políticas será inversamente proporcional ao grau de confiança política, consensos teóricos e saúde das relações entre as organizações revolucionárias. Porém, de uma forma ou de outra, a disputa política será inevitável e uma das organizações sairá vencedora, consagrando-se hegemônica.

Demais disso, forte catalizador para a resolução das disputas políticas, no pós-revolução, é a constate ameaça de restauração capitalista. Isso porque, enquanto inexistir uma síntese do projeto político a ser construído, essas disputas comprometem a necessária estabilidade política interna para se levar a cabo a transição socialista, deixando o Estado proletário vulnerável ao imperialismo e à retomada do poder pela burguesia.

No meu entender, são esses os motivos principais para que, nas experiências do socialismo real, haver se consolidado de forma tão acentuada a chamada política do “partido único”. Importante lembrar, porém, quem nem todas as experiências socialistas foram de partido único. Por exemplo, na China e Coréia Popular vemos que é possível a convivência harmoniosa de algumas organizações políticas, as quais atuam institucionalmente sob a hegemonia de um partido principal.

Nesse cenário, não me parece correta, nem salutar, uma a crítica principista contra ausência de um “pluralismo partidário” ou “alternância de poder” em um regime socialista, como assim defendem os “socialistas democráticos”, muito influenciados pela ideologia liberal.

Isso porque essa crítica, geralmente, desconsidera a natureza objetiva do processo histórico, acima descrito, que levou à situação de hegemonia partidária daquele partido. Além disso, desconsidera as consequências negativas que muito provavelmente trariam reformas políticas que dessem espaço na institucionalidade política e liberdade para que indivíduos se organizassem livremente. Desse ponto de vista, não se compreende que a defesa intransigente de pluralismo partidário ou alternância de poder, em países socialistas, pode comprometer seriamente as vitórias decorrentes da Revolução, uma vez que daria espaços privilegiados participação política para o imperialismo, a burguesia e seus agentes.

Há se falar também que essa crítica somente encontra eco, quando se ignora que existe na chamada “democracia liberal”, uma hegemonia ideológico-partidária, a qual não admite a existência de partidos marxistas-leninistas com influência de massas, os quais são invariavelmente perseguidos e silenciados. Admitem apenas sua existência formal, quando são pequenos e restritos a alguns nichos intelectuais.

Isso não quer dizer que se defende aqui um engessamento do pensamento político, ou mesmo combater pluralismo de ideias no seio da classe trabalhadora, dentro de um espectro comunista. Ao contrário, a pluralidade, em um sistema político comunista, deve existir e ser fomentada, assim como a existência de organizações de bases, pois somente a partir delas será possível obter uma maior consciência política para o enfrentamento dos problemas e crises a serem enfrentados na transição socialista, de modo que permita a classe dirigente possa atender da forma mais abrangente possível os anseios populares. Necessário, também, que a divergência e disputa política não sejam autofágica, caso contrário abrirão inevitavelmente fissuras capazes de abalar o poder político da classe trabalhadora organizada (como foi na transição do poder na URSS, após a morte de Stálin).

Nesse sentido, entendo que a disputa política no socialismo sempre existirá, porém, é natural que se dê no seio do partido hegemônico e das demais organizações a ele associadas, não fora deles. Primeiro porque isso seria desnecessário, pois, uma vez que o partido hegemônico admita o pluralismo de ideias, não faz sentido lógico ou prático que essas ideias se deem em organizações políticas distintas. Segundo, porque eventual insistência em uma liberalização política para permissão de criação organizações “independentes” gerará uma crise de confiança política, pois tenderá a refletir um sinal de ameaça contrarrevolucionária, o que levará a conflitos políticos (como no exemplo das “revoluções coloridas”), pondo em risco a transição socialista.

Do mesmo modo, é pouco relevante, de um ponto de vista comunista, falar-se em alternância constante das figuras públicas que exercem posições de liderança no Estado proletário e das organizações populares. Se a “alternância de poder”, em um contexto de pluralismo partidário, não é um princípio ontologicamente comunista, como acima demonstrado, não faz sentido defender uma alternância principista das suas lideranças.

Antes o contrário, a permanência de militantes por muitos anos em posições de liderança, tende a significar respaldo do restante da classe trabalhadora com as políticas adotadas e estabilidade política. É óbvio que, por razões biológicas, ninguém pode se manter nessas posições eternamente, por isso é necessário que seja continuamente trabalhada as transições das posições de liderança para que sejam feitas sem graves turbulências políticas. Também é relevante que sejam continuamente formados novos quadros políticos engajados e conscientes das suas responsabilidades revolucionárias. Nesse sentido, do ponto de vista do materialismo histórico, a alternância das posições de liderança, deverá ser defendida apenas quando, no caso concreto, se prove a melhor opção para os rumos da Revolução.

O pluralismo partidário e alternância de poder só devem ser defendidos pelos comunistas, como regra positivo-jurídica, em um sistema capitalista, mormente quando comandado por partidos sem comprometimento popular, tendo em vista a tornar possível a abertura do sistema político a partidos e orientações políticas populares e não hegemônicas.

Vale destacar que muitos Estados capitalistas-liberais tem como princípios políticos, positivados em suas constituições, a alternância de poder e pluralismo partidário de caráter burguês, o que pode ser explicado, sinteticamente, por dois motivos.

O primeiro advém do fato de que o Capital é composto por diversos setores, sendo assim, para se fazer representado são necessários diversos agentes políticos, com características e demandas relativamente distintas, mas com unidade centrada na defesa da classe burguesa, em detrimento da classe trabalhadora. Então a alternância de poder de representantes da classe dominante e o pluralismo partidário liberal funcionam como mecanismo de mediação das disputas intraburguesas. Esse foi o princípio político que orientou, por exemplo, o sistema estadunidense, por muitos, tido como o berço da democracia moderna, o qual foi estabelecido sem a participação da imensa maioria da população que vivia em seu território, a exemplo mulheres, indígenas e negros. Como se nota, a democracia liberal se contenta muito bem com a participação política apenas dos homens brancos detentores dos meios de produção. De todo modo, na atual fase do capitalismo monopolista, com a concentração do capital, as tensões entre setores da burguesia tendem a diminuir, o que reduz a necessidade, inclusive, de pluralidade de representações burguesas.

O segundo motivo é que o sistema político liberal foi relativa e progressivamente aberto à participação de setores populares a partir das demandas da classe trabalhadora. Em outras palavras, o direito de organização da classe trabalhadora em partidos e o sufrágio universal, por exemplo, só existem porque foram arrancados da classe dominante, a partir da luta de classes. É por isso que a influência popular na democracia liberal é uma constante preocupação da burguesia, pois a partir dela, ainda que de forma limitada, é possível levar a cabo um certo dirigismo estatal na economia e na vida política, tornando possível a tomada de medidas favoráveis à classe trabalhadora.

Nesse sentido, há uma evidente contradição na democracia burguesa, pois se por um lado ela permite que a burguesia se faça representada, em seus diversos setores, ela também permite que um mínimo de demandas populares ocasionalmente seja pauta política. Quando há intensa mobilização e participação popular na democracia burguesa, invariavelmente, vemos um crescente aumento tensões políticas e agudização da luta de classes, o que pode acarretar em aberturas ou recrudescimentos do sistema político, a depender da correlação das forças em disputa.

Marat du Bois

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Uma análise de filmes, livros e música amargem sinistra da Assembleia Nacional. Tido por “sem-cuecas”. Mantido por quatro sujeitos para além de esquerdistas.