Emil M. Cioran & Fernando Pessoa: uma incursão despretensiosa.

Jacobinistas
5 min readNov 7, 2022

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Título: Cuadernos (1957–1972)

Autor: E.M. Cioran

Ano: 2013

Editora: Tusquets Editores

Formato: Físico

Estilo e Temas: Poesia, Aforismo

Os Cadernos (1957–1972) de Emil Mihai Cioran (1991–1995) fazem parte da cotidianidade do autor romeno, que durante sua vida nos legou 32 cadernos de reflexões, borrões, aforismos e pensamentos, além de uma pequena dezena de livros. Escrevia intermitentemente, as vezes seguidamente, as vezes passando meses a fio sem rabiscar nada. Morou até o seu final de vida, numa mansarda em Paris, com sua companheira.

Publicado de forma póstuma pela editora Gallimard, em 1997, os cadernos revelam o íntimo da criação de Emil Cioran, suas desilusões, medos, frustrações, descobertas e decepções — sin embargos — .

Sua leitura se deu, para mim, não como um exercício de estilo ou de reflexão, mas de deleite literário e de (tentativa) de compreensão do escritor.

Profundamente ácido, culto, isolado nas sensações — remetendo à Alváro de Campos -, Cioran nos lega pílulas da vida e de suas investigações, não sem dor, não sem pudor, não sem desespero e doses de auto derisão e crítica.

Divertido, irônico, fechado em suas sensações, remete muito ao isolado nas sensações do poema Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa[1].

(…)

Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:

É estar ao lado da escala social,

É não ser adaptável às normas da vida,

Às normas reais ou sentimentais da vida —

(…)Coitado do Álvaro de Campos!

Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!

Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!

Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos, (…)

(Álvaro de Campos)

Viver é poder indignar-se. O sábio é um homem que tem deixado de indignar-se. Por isso, não está em cima, senão ao lado, da vida.

(Emil Cioran)

O Emil Cioran desses cadernos trabalha temas que me remetem muitíssimo à Álvaro de Campos. Procurei e não me surpreendi quando um artigo de autoria de Dagmara Kraus[2] revelara que em 02 de fevereiro de 1979, Cioran escreve à caneta vermelha o nome Fernando Pessoa.

Em um lacônico registro do dia 2 de fevereiro de 1970 em seus cadernos tipo diário, um diário semelhante em caráter e extensão ao Zibaldone de Leopardi, Cioran nos deixa com um enigma. Duas palavras, forçadas, quase modeladas no papel, atraem os olhos do leitor assim que a página é aberta. Destacando-se de um fundo de tinta azul, na sua maioria fragmentos prontos para ver a luz da publicação, é um nome inscrito a tinta vermelha grossa: Fernando Pessoa.

Acertara na mosca, são escritores com personalidades parecidas, com características que se aproximam. A pesquisadora Kraus revela que Cioran, justamente no período desses cadernos — circa de 1969 a 1972 — lia Fernando Pessoa e, em especial, os poemas de Álvaro de Campos.

Se o entusiasmo de Cioran pelo poeta português foi despertado por uma sugestão de um de seus amigos ou não, o seu interesse pelas obras de Pessoa coincide claramente com o aparecimento da edição bilingue da Gallimard de 1968 de Pessoa-‐Álvaro de Campos — Os poemas. Foi nos anos seguintes a esta edição que Cioran leu Pessoa e aqui e ali emprestava as suas palavras ou empregava as suas ideias. Há evidências de trechos e referências implícitas entre os textos e notas de Cioran que estava lendo Pessoa entre 1969 e 1972. Considerou não só as obras poéticas, mas também as cartas.

Cioran é talvez irmão de Bernardo Soares, o semi-heterônimo do Desassossego, vejam:

Tenho muito mais que sentido metafísico, tenho o sentido mórbido e a Verganglichkeit. Estou, literalmente, enfermo da caducidade universal, não consigo prescindir dela, estou intoxicado com ela. Tudo é perecível, intrínseco, absolutamente. Estou tão convencido disto, que saco conclusões contrária: um imenso consolo e uma desolação inqualificável. [Tradução Livre]

Emil como Álvaro, também morou na mansarda:

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,

Ainda que não more nela;

Serei sempre o que não nasceu para isso;

Serei sempre só o que tinha qualidades;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

(Tabacaria[3])

Vale a viagem da leitura de Emil Cioran, de suas entrevistas, de seus aforismos, de seus livros porque, como ele mesmo diz, “não escrevi com sangue, tenho escrito com todas as lágrimas que nunca derramei (…)”.

Trechos Extraídos (a ser completado petit à petit):

- Há muito tempo que creio que a capacidade de renunciar é o critério — o único — de nossos progressos na vida espiritual

- Weltolosigkeit: outra palavra cara ao meu coração, intraduzível como todas as palavras estrangeiras que me seduzem e me preenchem [NDR — Literalmente, “ausência do mundo”]

- Tenho lido em demasia… A leitura tem devorado meu pensamento. Quando leio, tenho a impressão de “fazer” algo, de justificar-me perante a sociedade, de ter um emprego, de escapar a vergonha de ser um ocioso… um homem inútil e inutilizável.

- A grande arte consiste em saber falar de si mesmo em um tom impessoal. (O segredo dos moralistas)

- Armar-se de paciência, que justa é essa expressão. A paciência é efetivamente uma arma com a qual, quando armados, nada pode abatê-la. É a virtude que mais careço. Sem ela, nos vemos automaticamente entregues ao capricho e a ao desespero.

- No cabelereiro. Espero uma boa meia hora. O dono conversa atrás do biombo. Pensava que estava ocupado com uma cliente. Quando por fim aparece e me diz que estava fazendo sua declaração de imposto, digo lhe: “Se soubesses, teria ido embora”. “Na vida existem outras coisas além de cortar o cabelo”, me responde sua mulher com o tom mais insolente. Gelou-me o sangue nas verias. E, sem embargo, me calei, contra meu costume. Essa vitória sobre mim mesmo tem sido tão inesperada, que deu me uma grande satisfação.

- Quando nos lamentamos de algo, sempre levamos nosso próprio luto, sempre choramos por nós mesmos… não por egoísmo, mas porque toda pena se alimenta de si mesma, de sua própria substância.

- Não conheço um elogio mais belo, aplicado a um livro, que esse “amigo das horas difíceis”.

[1] Disponível em < http://arquivopessoa.net/textos/553 > Acesso em 07.11.2022.

[2] Disponível em < https://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/pessoaplural/Issue7/PDF/I7A02.pdf > Acesso em 07.11.2022.

[3] Disponível em < http://arquivopessoa.net/textos/553 > . Acesso em 07.11.2022.

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Uma análise de filmes, livros e música amargem sinistra da Assembleia Nacional. Tido por “sem-cuecas”. Mantido por quatro sujeitos para além de esquerdistas.