Leminski e Budo

Jacobinistas
8 min readAug 18, 2020

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Título: Toda Poesia

Autor: Paulo Leminski

Ano: 2013

Editora: Companhia das Letras

Formato: Físico

Estilo e Temas: Poesia

Paulo Leminski e sua obra não pode ser compreendida integralmente sem entender a ligação que o poeta e a obra guardaram com a cultura japonesa e as artes marciais. Essa é a minha tese. A poesia do Leminski é Budo e dor, caminho e espírito selvagem. Disciplina e tour de force de uma mente forte.

Não é por acaso que, durante esse isolamento social, retornei à leitura de cabo a rabo de livros de poesia. Minha própria trajetória marcial me trouxe de volta ao poeta que é conhecido por ser o Samurai-Malandro, segundo a Leyla Perrone-Moisés[1].

A compilação de Toda Poesia traz o poeta curitibano com compêndios publicados em vida (quarenta clics em curitiba [1976], caprichos & relaxos [1983], distraídos venceremos [1987] e la vie em close [1991]), assim como algumas obras póstumas e inéditas [o ex-estranho e parte de AM/OR [1996], winterverno [2001] e poemas esparsos).

E que delícia!

Minha opinião é de que a poesia de Leminski não pode ser entendida e apreciada em sua inteireza, para além do que os especialistas falam sobre a sua inserção em correntes da literatura nacional (poesia concreta e mimeográfica), sem entender a influencia do Budo, as artes marciais japonesas. O Kanji “bu” representa e significa alma selvagem ou mente forte, “do” é traduzido como caminho. As artes marciais japonesas são perpassadas pelo Budo, assim como o Leminski o foi.

A influencia da cultura japonesa é inquestionável na obra do poeta. Desde os inúmeros Haicais, menções à Bashô (poeta medieval nipônico), Leminski ele mesmo foi praticante de Judo. A própria obra traz o Leminski num kimono!

A lógica da marcialidade do Bushido[2] é perene na obra de Leminski, mas três aspectos principais sempre são recorrentes na poesia do bigodudo: a precisão, a conquista da posição e o ritmo ou o tempo de ação.

Segundo Yagyu Munenori (71 宗 矩, 1571–11 de maio de 1646)[3], espadachim e samurai japonês, “em uma luta entre duas espadas que se opõem, a vitória vem ao homem que naturalmente harmoniza Princípio e Função, e cujas mãos e pés trabalham bem[4].

Para Munenori, tudo pode ser perpassado pela arte marcial, desde coordenar uma guerra, associar-se com amigos ou arrumar a própria casa:

Arrumar objetos em sua sala de estar depende do uso daquilo que é correto em cada lugar e isso, também, é uma questão de enxergar dentro do princípio daqueles lugares. Isto não é diferente do coração mesmo das artes marciais

Nesse sentido, enxergo na poesia de Leminski uma marcialidade inegável. Cada palavra milimetricamente pensada, colocada em espaçamento preciso com um ritmo que só se aprecia quando declamada é uma disciplinada expressão do Bushido.

Tal precisão aparece mais em curtos poemas, claro que também nos Haicais, mas é presente em toda sua obra.

Veja, por exemplo:

Antes que a tarde amanheça

e a noite vire dia

põe poesia no café

e café na poesia

*(poemas esparsos)

Neste poema, as palavras se concatenam precisamente, construindo relações entre as figuras de tarde, amanhecer, noite, dia e café, entrelaçando-se num coeso todo final limpo.

As duas primeiras estrofes conquistam a posição, não diferente de quando se pratica artes marciais (Antes que a tarde amanheça e a noite vire dia). Aqui, se propôs a tese e entrou-se na defesa do inimigo. O ataque já se iniciou.

A terceira é a conclusão do ataque, limpo, nítido (põe poesia no café). Aqui o inimigo, o leitor, já está derrotado, já está conquistado pelas palavras de Leminski, talvez sem o saber.

A quarta, encerra o combate (e café na poesia). Um ippon[5]. A prática do Aikidô e do Judô espelham esse tai-otoshi[6].

Um ataque tão limpo não é espontâneo e não vem de mera inspiração e sim de uma organização e de um acúmulo intelectual gigantesco. É uma construção que vem de um processo. Do treino. Remete a prática do Iaido[7], a arte de desembainhar a espada do modo mais preciso, econômico e limpo possível de forma a se vencer o inimigo com apenas um corte.

Ainda que os poemas soem brincalhões, por isso o “malandro” além de samurai, eles são cirúrgicos tal qual um corte de katana[8]:

erra uma vez

nunca cometo o mesmo erro

duas vezes

já cometo duas três

quatro cinco seis

até esse erro aprender

que só o erro tem vez

*(La Vie em Close)

Duas das máximas do Hagakure[9], livro composto de mais de 13 mil sentenças que envolvem diversos temas do Japão feudal, desde a organização dos utensílios para a Cerimónia do chá até a relação do bushido com o budismo zen, vão nesse sentido e reafirmam a importância da palavra certa, no lugar certo, no momento certo:

Para um samurai, uma só palavra é importante não importando onde esteja. Através de uma simples palavra o valor marcial torna-se aparente. Em tempos de paz, palavras mostram coragem. Em tempos turbulentos, também, é sabido que através de uma simples palavra a força ou covardia é revelada. A simples palavra é a flor do próprio coração. Não é algo simplesmente dito com a boca.

(…)

Não se pode realizar algo simplesmente com sagacidade. Tem de se tomar uma visão ampla. Não dá para tomar decisões apressadas sobre o certo e o errado. Todavia, não se pode ser lerdo. É dito que não se é um samurai de verdade se não se toma decisões rápidas e rompendo até a conclusão.

Muito se fala hoje em dia e muito se vê pessoas sem experiência, vivência e acúmulo reivindicarem-se poeta, escritor e artista. Mas poucos se deram o trabalho de penetrar a estrutura de seus ofícios. De contemplar longamente a sua arte. A inspiração é parte de um todo e não o todo. Leminski foi um samurai com anos de estudos, de leituras, de vivencias, de tatame. A poesia foi seu caminho, seu do e sua dor.

Leyla Perrone-Moisés mais qualificada, mais entendida é quem diz:

Samurai e malandro, Leminski ganha a aposta do poema, ora por um golpe de lâmina, ora por um jogo de cintura. Tão rápido que nos pega de surpresa; quando menos se espera, o poema já está ali. E então o golpe ou a ginga que o produziu parece tão simples que é quase um desaforo:

acordei bemol

tudo estava sustenido

sol fazia

só não fazia sentido[10]

Leminski levava a poesia como um hábito de monge budista, a sério, como um código de guerreiro, sem por isso deixar de ser arrebatadoramente sagaz, assim como a espada de Munenori que não só mata, mas dá a vida. Pensava seriamente, para agir rápido, como avisa o Hagakure:

Entre as máximas inscritas nas paredes do senhor Naoshige estava esta: “Assuntos de grande importância tem de ser tratados de forma leve”. Mestre Ittei comentou: “Assuntos de pequena importância tem de ser tratado seriamente”. Dos assuntos pessoais de uma pessoa, apenas dois ou três assuntos têm de ser de grande importância. Se estes forem discutidos no dia a dia, eles serão entendidos. Pensar nessas coisas com antecedência e então lidar com elas de forma leve quando a hora chegar é o que quis dizer a máxima. Encarar um evento e resolvê-lo de forma leve é difícil quando não se está resolvido anteriormente e existirá sempre a incerteza de atingir o alvo. Todavia, se a fundação é posta antes, pode-se carregar a máxima, “Assuntos de grande importância tem de ser tratados de forma leve” como sua base de ação.

Para aqueles que conhecem a história do mais celebres dos samurais, Miyamoto Musashi, irão se lembrar do episódio da estalajadeira e do talo de flor.

Miyamoto Musashi fora um samurai errante que, durante um período de sua vida, viajou de feudo em feudo em busca de grandes mestres para combater, com intuito de apurar sua técnica de combate e provar a si mesmo que era o melhor espadachim do Japão. Em certa ocasião, quis desafiar um mestre espadachim que também era Daimyo (lorde feudal) mas não conseguira uma audiência ou acesso ao castelo do lorde. Então, instalou-se, anonimamente, num albergue que sabia ser frequentado pelo mestre espadachim, intento em testar a habilidade do senhor feudal. Um dia, finalmente, o Daimyo foi a estalajadeira, bebeu e socializou enquanto Musashi permaneceu sentado em uma mesa distante, com uma flor colocada ao centro. Quando estava de saída, Musashi interpelou o senhor de modo respeitoso, sem qualquer ameaça ou intenção de ataque. O senhor feudal cordialmente saudou o samurai errante e, quando estava preste a ir embora, parou congelado fixado no talo da flor em cima da mesa. Imediatamente, os sentidos do Daimyo se alertaram, pegou a flor na mão, analisou o corte do talo e pouso seu gélido olhar em Miyamoto Musashi. Percebera o Daimyo que o corte no talo da flor era perfeito, limpo, preciso, coisa que somente outro mestre espadachim poderia ter feito. Todo o ocorrido fora um teste do samurai errante ao senhor feudal que, finalmente, aceitara ser desafiado e testado por Miyamoto Musashi[11].

A poesia de Leminski é como o talo da flor cortada por Miyamoto Musashi. Só um mestre samurai poderia ter talhado as palavras com tamanha precisão, conquista da posição e o ritmo de ação.

Aço em flor

Quem nunca viu

que a flor, a faca e a fera

tanto fez como tanto faz,

e a forte flor que a faca faz

na fraca carne,

um pouco menos, um pouco mais,

quem nunca viu

a ternura que vai

no fio da lâmina samurai,

esse, nunca vai ser capaz

*(distraídos venceremos)

(melhor quando lido em voz alta)

  • Jorge J. Dantão

[1] Escritora e Crítica Literária. Disponível em <https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=00344 >

[2] Bushido ou caminho do guerreiro japonês, é um código de honra e conduta da classe guerreira dos samurais. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Buxido>.

[3] Yagyu Munenori foi fundador do estilo de espada, Edo de Yagyū Shinkage-ryū (oficial do shogunato Tokugawa) e autor do livro “A Espada que Dá Vida”. Disponível em < https://en.wikipedia.org/wiki/Yagy%C5%AB_Munenori > e < https://pt.wikipedia.org/wiki/Yagy%C5%AB_shingan-ry%C5%AB>.

[4] Livro disponível — < https://www.amazon.com/Espada-que-Vida-Portuguese-Brasil/dp/8531612284 >

[5] Para ilustrar, segue um poema selecionado da coletânea:

tai-otoshi para a kodokan

passos lentos

escrevem

VONTADE DE CHEGAR

Precisa andar

como quem já chegou

chega de chegar

depressa

é muito devagar

[6] “ Ippon (一本? um) é um termo utilizado em competições de artes marciais japonesas, como karatê e judô, atribuída a um golpe “perfeito”.” Disponível em < https://pt.wikipedia.org/wiki/Ippon >

[7] “Iaidô (em japonês: 居合道, iaidō) é a arte marcial japonesa do desembainhar da espada. Consiste em conjuntos de katas, técnicas ou movimentos que permitem ao praticante reagir de forma apropriada a determinadas situações.” Disponível em < https://pt.wikipedia.org/wiki/Iaido >

[8] “A katana (刀?) ou em sua forma aportuguesada catana[2] é uma tradicional espada japonesa (日本刀 nihontō?)[3][4][5] que foi usada pelos samurais do Japão antigo e feudal.[6] A katana é caracterizado por sua aparência distintiva: uma lâmina curva, de um único fio com um protetor circular ou esquadrado e um cabo longo para acomodar duas mãos.”. Disponível em < https://pt.wikipedia.org/wiki/Katana >.

[9] O Hagakure foi escrito pelo samurai Yamamoto Tsunemono ( 1659–1719) durante sete anos de conversa com um samurai mais jovem

[10] Texto na íntegra disponível em < http://prosadeverso.blogspot.com/2013/08/o-samurai-malandro.html > .

[11] “Miyamoto Musashi (宮本武蔵?) (batizado Shinmen Musashi No Kami Fujiwara No Genshin) (Harima, c. 1584 — Higo, atual Kumamoto, junho de 1645), também conhecido como Shinmen Takezō, ou Miyamoto Bennosuke, ou pelo nome budista Niten Dōraku, foi um japonês do clã Tokugawa (1603–1868), espadachim, ronin, ex-samurai, criador da técnica de espadas Niten Ichi Ryu[1][2] (ou Kenjutsu) e escritor do tratado sobre artes-marciais chamado de o livro dos Cinco Anéis”. Disponível em < https://pt.wikipedia.org/wiki/Miyamoto_Musashi >.

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Uma análise de filmes, livros e música amargem sinistra da Assembleia Nacional. Tido por “sem-cuecas”. Mantido por quatro sujeitos para além de esquerdistas.